sábado, 6 de abril de 2013

OS TESOUROS QUE GUARDO NA MALETA




Com passos lentos, pesados e tristes, entrei na estação com a cabeça ereta, olhar distante, olheiras enormes, carregando nos ombros o fardo da derrota, do fracasso e a sensação desgostosa de que nada mais parece fazer sentido para um homem quando perde um amor que julga ser verdadeiro e eterno.

Nas mãos eu levava uma maleta que continha apenas algumas coisas, pequenas coisas que qualquer leigo consideraria irrelevante, mas que para mim era de suma importância e apreço, com enorme significado sentimental. Além dessa maleta, um emaranhado de roupas trajava meu corpo. Nos pés usava um sapato marrom, que balbuciava tristonhos sons através do andar lento de meus passos. Usava também uma calça social negra e um paletó desbotado cor caqui. Um cachecol verde escuro cobria meu pescoço, protegendo-me do frio, e na cabeça uma boina bege completava meu traje maltrapilho que delatava minha desleixa, e só externava o que por dentro eu sentia.

Ao mergulhar na plataforma de embarque, percebi que minha única companhia era a solidão. Sentei num velho banco de madeira encostado parede, coloquei a maleta em meu colo, pus as mãos sobre ela para protegê-la e esperei. A névoa me vigiava com intensa obscuridade e as luzes da noite desenhavam figuras enigmáticas e fantasmagóricas com a participação especial do vento, que além de causar-me frio, também sabia trazer o rumor de uma noite de trevas. Ali, sentado e imerso no meu mundo que antecipava a partida, comecei a pensar nela e em tudo o que tinha vivido e, de certa forma, deixado de viver.

Conheci o meu grande amor quando a juventude de outrora ainda me proporcionava momentos de prazer. Naquela época tudo cheirava a guerra e até mesmo nos raros momentos de alegria, ela parecia não desgrudar de nossa alma. Foi no cair de uma chuvosa noite de sexta-feira que conheci Irina Steiner, um formosa moça alemã de cabelos louros e olhos azuis que me encantou desde o primeiro instante. Era apenas a primeira de muitas noites que viveríamos juntos, e graças a ela aprimorei o que de melhor eu sabia fazer.

Desde pequeno fui presenteado com o dom do desenho. Inicialmente eram rabiscos que somente minha mãe considerava bonito, mas como nas noites de solidão a única coisa que eu conseguia fazer era desenhar, com o tempo os rabiscos se tornaram traços em formas realistas e dignos de elogios. Lentamente comecei a viver desse oficio e, muito embora as parcas economias não me revelassem luxo algum, considerava aquele trabalho um processo de extrema felicidade, onde me sentia bem.

Irina tornou esses meus dotes melhores a partir do momento que comecei a desenhá-la, quando me requisitou o primeiro traço seu. Tenho certeza que todos os desenhos que fiz de Irina foram feitos com a alma de um desenhista que ama o que faz e para quem o faz.

A vida me furtou-a e hoje eu não pertenço mais a ela. Irina casou-se com outro homem. Surpreendi-me com o dissabor dessa notícia quando voltei de uma viagem longa, depois de viver anos com a minha falecida mãe. Sem compreender e impossibilitado de conviver com os fatos que agora me golpeava o peito, decidi, com lágrimas nos olhos, partir, sem rumo, com ela no meu coração e com ela diante dos meus olhos, através dos traços dos desenhos que trago como um tesouro dentro dessa maleta.

O barulho do trem se aproximando arrancou-me do meu devaneio. Levantei e me aproximei dos trilhos. Quando parou, a porta do último vagão se abriu para mim. Respirei fundo e olhei para os lados com a tola impressão de vê-la correndo em minha direção, como se um fio de esperança ainda permanecesse vivo. Sem visualizar nenhuma silhueta e nada além da névoa e do vento, entrei no trem e sentei na janela. Olhei para a maleta e a abri. Comecei a ver os desenhos que fiz de Irina Steiner e subitamente um turbilhão de emoções esbofeteou meu peito. Assim que vislumbrei o primeiro desenho – ela sorrindo para mim –, uma lágrima caiu sobre a folha. Parecia que um emaranhado de lágrimas começaria a riscar meu rosto, mas antes que eu pudesse perceber, assim que uma gota de água despencou e manchou o papel, as luzes da cidade sumiram e a escuridão da noite penetrou, como um intruso, não só no vagão, mas também em meu coração.